segunda-feira, 26 de abril de 2021

Eternamente, José Domingos Raffaelli


Há sete anos (27/4/2014) perdiamos o critico José Domingos Raffaeli, aos 77 anos, vítima de um melanoma na região da coluna. Para os fãs de jazz, Raffaeli fazia parte da trinca de ouro do jornalismo jazzistico ao lado de Zuza Homem de Mello e Luiz Orlando Carneiro, todos catedráticos e apaixonados pelo jazz e a música poupular brasileira.

O legado de Raffaelli está imortalizado em centenas de artigos e estrevista publicados nos jornais cariocas O Globo e Jornal do Brasil, nos progrmas de rádio que produziu e apresentou, nos textos que escreveu para contracapas e releases de discos de jazz e música brasileira, nas participações em programas de TV e nos livros que publicou, entre eles, Guia de Jazz em CD (com Zuza Homem de Mello/2002) e Obras Primas do Jazz (com Luiz Orlando Carneiro/1986). Raffaelli também foi premiado pela International Association of Jazz Educators (IAJE), em 1999, como o melhor crítico do gênero fora dos EUA. Você pode ter mais detalhes sobre a vida de Raffaelli visitando o site da Associação Brasileira de Imprensa.

Em 2009, tive a honra de entrevistar Raffaeli para o meu lvro Jazz ao seu alcance (Multifoco). Como de costume, ele foi muito receptivo e um entusiasta do meu projeto, aceitando prontamente a responder ao um longo questionário que enviei por e-mail. Semanas depois, recebo as 17 perguntas cuidadosamente respondidas e com sua sempre eloquente sabedoria.

Veja abaixo alguns trechos da entrevista realizada em 2009. A íntegra da entrevista com Raffaelli e mais nove personalidades do mundo da música instrumental brasileira e de jornalistas, entre eles, Luiz Orlando Carneiro, Zuza Homem de Mello, Carlos Calado e Nelson Ayres, estão no livro Jazz ao Seu Alcance.

Como nasceu o seu interesse pelo jazz?

Comecei a ouvir jazz ainda menino, lá pelos 8 ou 9 anos. Meus pais possuíam uma pequena coleção de discos, a maioria de ópera, o gênero favorito deles, além de dois da orquestra do maestro Paul Whiteman. Foram estes dois que me agradaram. Sua música diferente de tudo que meus pais ouviam atraiu-me imediatamente. Durante muito tempo eu os ouvi exaustivamente entusiasmado por suas belas melodias e pelo ritmo com muito swing, algo até então inteiramente desconhecido. Um mundo novo abriu-se para mim.

Essa primeira experiência despertou minha curiosidade, motivando a ouvir programas de música americana no rádio, começando a familiarizar-me com os músicos e cantores da época. Aos poucos fui tomando conhecimento de big bands como as de Duke Ellington, Count Basie, Jimmie Lunceford, Tommy Dorsey, Harry James, Artie Shaw, Benny Goodman, Glenn Miller e outras.

No ginásio, fui colega de Ary Vasconcelos, que na época redigia a primeira coluna de jazz na imprensa carioca – na revista A Cena Muda. Logo estreitamos nossa amizade e conversávamos longamente sobre jazz, ouvindo dele nomes até então desconhecidos para mim: Fats Waller, Louis Armstrong, Coleman Hawkins, Lester Young, Earl Hines e Art Tatum, entre tantos outros. Posteriormente, Ary tornou-se profundo estudioso da música popular brasileira, com ampla atuação nos meios musicais e didáticos, sendo autor de inúmeros livros sobre o assunto. Mais tarde, assistindo a diversos filmes musicais, fui vendo e ouvindo vários músicos e vocalistas que me encantavam tanto e traziam tanta felicidade à minha vida. Aos 14 ou 15 anos tinha minha aparelhagem de som e comecei a montar minha discoteca. Quando comecei a trabalhar, aos 17 anos, gastava quase todo meu salário em discos, para tristeza de meus pais.

O gosto e o interesse pelo jazz levaram-me a estudar saxofone com o pai do saxofonista Paulo Moura tudo o que queria era tentar tocar jazz, o que, evidentemente, não se aprende de uma hora para a outra. Apesar das minhas limitações, consegui alguns progressos, mas tendo de trabalhar de dia e completar os estudos à noite, não sobrava tempo para o sax. Comprar e ouvir discos continuamente permitiu familiarizar-me com inúmeros músicos, conjuntos e orquestras de jazz. Naquela ocasião, havia alguns núcleos de entusiastas do jazz no Rio e um deles era o célebre Sinatra-Farney Fã Club. Frequentando suas reuniões tornei-me amigo de vários deles, que mais tarde seriam famosos com o advento da bossa nova.

Pouco tempo depois, ao lado de alguns amigos, fiz parte da diretoria de três clubes de jazz e organizávamos regularmente jam sessions com músicos brasileiros. A partir dos 17/18 anos desenvolvi o hábito de fazer anotações e pequenos comentários enquanto ouvia discos, o que certamente estimulou decisivamente o desejo de escrever sobre música, o que me levou ao jornalismo, atuando na imprensa nacional e internacional durante algumas décadas. Foi uma colossal surpresa para meus pais ao saberem que eu seria pago para escrever sobre jazz num jornal, algo totalmente inimaginável para eles. Com o tempo, paralelamente ao jazz, convenci meu editor no Jornal do Brasil a escrever também sobre música instrumental brasileira. Fui o primeiro a escrever sobre bossa nova num jornal do Rio. O resto, é fácil concluir, foi continuar a escrever sobre jazz e música instrumental brasileira.

Com o tempo, ampliei minha área de ação colaborando para revistas, publicações estrangeiras, discografias de jazz, além de ser correspondente brasileiro em várias revistas de jazz americanas, europeias e japonesas (Jazz Journal, Jazz Hot, Jazz Forum. Jazz Life, Billboard, JazzIt). Durante cinco anos redigi textos para o programa Free Jazz in Concert, para a TV Manchete. Produzi e apresentei inúmeros programas de rádio em emissoras cariocas (Rádio Eldorado FM, Rádio CBN, Rádio Jornal do Brasil AM-Estéreo, Rádio Imprensa, Rádio MEC-AM/FM). Enfim, paro por aqui para que esta entrevista não se transformar em biografia.

Qual músico de jazz você gostaria de ter assistido ao vivo? Por quê?

Vários, a começar pelas orquestras de Fletcher Henderson, Jimmie Lunceford, Benny Goodman (a dos anos 30/40) e Glenn Miller, está por razões sentimentais. Um que especialmente desejaria ter ouvido foi o fenomenal Fats Navarro, um trompetista notável que lamentavelmente morreu aos 26 anos. Seus solos sempre foram dos mais completos em termos de estrutura, organização, ideias, articulação, continuidade e, sobretudo, invenção melódico-harmônica. Alguns dos seus solos são modelos utilizados para estudantes das escolas de jazz norte-americanas. Seu inesquecível solo em “Nostalgia” simboliza a mais coordenada improvisação de trompete do jazz moderno que ouvi.

Outro seria o saxofonista tenor Wardell Gray, falecido tragicamente aos 34 anos, cuja fluência no instrumento foi virtualmente incomparável, alinhavando frases sobre frases construídas com lógica, facilidade, soberbo senso de desenvolvimento imaginativo e irrepreensível bom gosto. A big band de Benny Carter dos anos 40, a de Stan Kenton, Jimmy Cleveland, Bobby Hackett, Art Tatum, a formação original dos Jazz Messengers de Art Blakey (com Kenny Dorham, Hank Mobley, Horace Silver e Doug Watkins), Lennie Tristano, Wynton Kelly, Stan Hasselgard, Charlie Christian, Django Reinhardt e Duke Brooks são outros que gostaria muito de ter assistido ao vivo.

Há uma discussão antiga sobre a existência ou não de jazz brasileiro. O que você acha, existe jazz brasileiro? Podemos considerar Egberto Gismonti, Cláudio Roditi, Raul de Souza, Dick Farney e Victor Assis Brasil como jazzistas brasileiros?

Não existe um jazz brasileiro propriamente dito. O que aconteceu foi a incorporação da improvisação do jazz aos ritmos brasileiros, principalmente com o advento da bossa nova, cuja amálgama ficou conhecida como jazz-samba. Entretanto, alguns dos nossos músicos tocaram e tocam jazz muito bem, entre eles o saudoso Victor Assis Brasil, um grande desbravador e descobridor de talentos; Cláudio Roditi, que há 37 anos vive em Nova York inteiramente integrado ao cenário americano; os pianistas Moacir Peixoto, já falecido, Hélio Alves e Eliane Elias (esta, com certas restrições), o baterista Duduka da Fonseca e os baixistas Nilson Matta e Dôdo Ferreira.

Raul de Souza tocou jazz, jazz-samba e estilos brasileiros com muito sucesso. O popular cantor Dick Farney, que alternou sua carreira de cantor romântico com a de pianista de jazz, foi uma força pioneira nos anos 50 e 60, liderando trios, quartetos e uma big band da maior expressão. Esses são os principais nomes dos jazzmen brasileiros. No Brasil, temos músicos capacitados a tocar jazz; mas, como raramente têm essas oportunidades, só o fazem esporadicamente em eventos isolados. Egberto Gismonti percorre outros caminhos sem qualquer ligação com o jazz.

O mesmo acontece em relação a Hermeto Pascoal, que alguns consideram músico de jazz, alegando que ele improvisa. Ledo engano. Certos críticos e mesmo músicos profissionais brasileiros consideram que toda música improvisada é jazz, o que é um absurdo. Ravi Shankar, Astor Piazzolla, Dino Saluzzi, Litto Nebbia, Hermeto, Paco de Lucia, Al DiMeola, Pepe Romero, Egberto, Sivuca, John McLaughlin e muitos outros também improvisam, mas não tocam jazz. Muitas vezes li que Bach improvisava, mas isso fez dele um jazzman?

Há mais alguma consideração ou comentário que você gostaria de fazer?

Sim, temos de estimular os jovens a ouvirem e gostarem de jazz, mas separando o joio do trigo. No curso sobre história do jazz que leciono há mais de 10 anos e em minhas palestras, enfatizo essa diferença fundamental. Devo acrescentar que muitos jovens inscrevem-se nos meus cursos e todos eles, sem exceção, se interessam bastante pelo assunto. Isso significa que os jovens brasileiros não são avessos ao jazz, a despeito de a mídia promover unicamente o que há de mais rasteiro e inócuo em termos de música. Assim como novos músicos surgem no firmamento do jazz, também, a cada ano, novos jazzófilos fazem crescer a audiência do jazz, também chamada de “música dos músicos”.

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