sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Dan Morgenstern eleva a arte da crítica

O papel da crítica tem sempre dois lados: positiva ou negativa. A questão é saber se a única intenção do crítico é realmente usar seus conhecimentos para ajudar o leitor a decidir se consumirá aquele produto (livro, disco, filme, peça, TV, celular etc) ou se sua crítica tem o objetivo de apenas aniquilar a pretensão do desavisado e exposto consumidor.

Essa pequena linha tênue sempre haverá em uma crítica. Mas o que pode fazer o leitor decidir para qual lado ele seguirá é a idoneidade de quem a escreve.


Esse capital chamado confiança é algo cada vez mais difícil de encontrar na era das redes sociais. O leitor/consumidor é bombardeado por pseudos críticos e gurus dos mais distintos assuntos, todos eles com suas verdades absolutas. Mas no meio deste tiroteio, sempre haverá um benfeitor por quem o leitor poderá confiar sua atenção e encontrar uma crítica contundente e, acima de tudo, coerente com as convicções adquiridas pelo crítico ao longo de sua vida.

É neste pequeno rol de notáveis que está o crítico alemão, radicado nos Estados Unidos, Dan Morgenstern, diretor do Instituto dos Estudos de Jazz da Universidade de Rutgers, em Nova Jersey (EUA) e membro do National Endowment for the Arts Jazz Master. Em outubro deste ano, ele completa 90 anos.

Morgenstern (na foto com Quincy Jones e Lena Horne) se auto-intitula um "advogado do jazz", ou seja, alguém que procura esclarecer os caminhos do jazz e de seus protagonistas para um leitor ávido por informação e carente de embasamento. Em resumo, Morgenstern é um apaixonado por aquilo que faz e compartilha seu conhecimento sem pedir nada em retribuição.

Durante seis décadas, o crítico escreveu diversos livros, entre eles Living With Jazz, e ganhou sete prêmios Grammy na categoria liner notes, ou seja, aquele texto que você encontra no encarte do CD. Além disso, foi editor da revista Down Beat entre 1967 e 1973, escreveu para diversos jornais e lecionou sobre a história do jazz em diversas universidades dos Estados Unidos

Em uma entrevista ao jornalista Marc Myers, do The Wall Street Journal, o crítico resumiu com clareza o seu ofício. "Um dos meus grandes prazeres como escritor é alguém me dizer que algo que eu escrevi (um livro, um artigo, anotações) o expôs a um determinado jazzista. Recentemente, alguém me procurou e falou que leu um artigo sobre um disco de Dexter Gordon que eu escrevi para a revista Down Beat, e que isso foi importante para ele criar um vínculo com jazz desde então".

Para a sorte dos leitores mais atentos, Morgenstern não é um caso isolado. Nomes como Gary Giddins, Ashley Kahn e Nat Hentoff são reconhecidos como críticos preocupados com a crítica construtiva e com a disseminação do conhecimento em seu mais nobre objetivo: abrir a mente das pessoas e deixá-las decidir por conta própria o que desejam ouvir, comer, beber, comprar ou, simplesmente, não consumir nada que um "estranho" que se auto-denomina crítico tenta dizer se é bom ou ruim.

Abaixo você encontra uma entrevista (dividida em dois vídeos) concedida por Dan Morgenstern ao programa Tony Guida’s NY, em 2017. Na ocasião, o crítico falou sobre o centenário da primeira gravação de jazz, que aconteceu oficialmente em 1917, com a Original Dixieland Jazz Band, e outras particularidades sobre os músicos de jazz, com destaque para Ella Fitzgerald e Louis Armstrong. O último vídeo é um passeio guiado por Morgenstern no Instituto dos Estudos de Jazz da Universidade de Rutgers, em Nova Jersey (EUA). Os vídeos publicados no Youtube estão em inglês, mas é possível ativar a legenda em inglês.

Veja a seguir seis discos indicados pelo crítico:

Charlie Parker's Savoy and Dial
Count Basie: Complete Original American Decca Recordings
Duke Ellington: Never No Lament: The Blanton-Webster Band
The Complete Ella Fitzgerald and Louis Armstrong
Art Tatum: The Complete Pablo Group Masterpieces
Billie Holiday and Lester Young: A Musical Romance

Abaixo estão os títulos dos discos que Morgenstern ganhou o Grammy na categoria liner notes:

2008: The Complete Louis Armstrong Decca Sessions (1935-1946) (Louis Armstrong)
2005: If You Got to Ask, You Ain't Got It! (Fats Waller)
1993: Portrait of the Artist As a Young Man 1923-1934 (Louis Armstrong)
1989: Brownie: The Complete EmArcy Recording (Clifford Brown)
1980: Master of the Keyboard (Erroll Garner)
1975: The Changing Face of Harlem: The Savoy Sessions (various artists)
1973: The Hawk Flies (Coleman Hawkins)
1972: God Is In the House (Art Tatum)




segunda-feira, 16 de setembro de 2019

The Brand New Heavies oferece mais do mesmo

Tirem as crianças da sala, afaste o sofá, pegue seu par e dance sem parar. É mais ou menos isso o que o ouvinte do novo disco da banda inglesa The Brand New Heavies (TBNH) terá vontade de fazer ao tocarem a primeira faixa "Beautiful", interpretada pela também britânica Beverley Knight, uma das convidadas de Andrew Levy (baixo) e Simon Bartholomew (guitarra), os cérebros por trás do TBNH.

Difícil acreditar que três décadas se passaram desde o primeiro disco do TBNH, que ao lado de Jamiroquai, US3, Incognito, Count Basic, Young Disciples e Brooklyn Funk Essentials apresentaram ao mundo o que foi rotulado de acid jazz, uma espécie de jazz misturando soul, funk e influências da disco music.

O velho som com influências de Chic, Chaka Khan, Issac Hayes e Stevie Wonder estão novamente ao alcance de uma nova geração de ouvintes. Simon e Andrew não perderam a mão e continuam fazendo qualquer plateia dançar o show inteiro. No novo álbum, chamado TBNH, eles escalaram uma constelação de belas vozes para darem alma a suas composições. Duas delas, conhecidas do antigos fãs: N’Dea Davenport (foto abaixo) e Siedah Garrett.

As duas cantoras são responsáveis pelos dois duas mais conhecidos da banda: Brother Sister (1994) e Shelter (1997), respectivamente interpretados por Davenport e Garrett. Aqui, elas aparecem em cinco das 14 faixas. Por mais que cada uma tenha seu jeito de cantar, fica evidente que Davenport continua sendo a vocalista que melhor se encaixou em toda a história da banda. Escute "Wired Up" e "Getaway" e veja como tudo se encaixa com perfeição.

Ela também brilha na versão de "These Walls", originalmente gravada por Kendrick Lamar e produzida por Mark Ronson, que tem no currículo trabalhos com Lady Gaga, Adele, Miley Cyrus e Bruno Mars. Mas é claro que a voz mais singela de Siedah não é desprezada, pelo contrário, ela cai perfeitamente na bela "It's My Destiny" e na levada soul "Just Believe in You", que criará um Déjà vu delicioso nos quarentões.

A aposta da vez de Andrew e Simon é a cantora Angela Ricci, que será responsável pelos vocais do grupo na turnê que fazem pelo Reino Unido. No disco, ela interpreta "Dance It Out" e "Stupid Love", duas canções com as marcar registradas do grupo: a linha de baixo marcada de Simon e a guitarra rítmica. Destaque também para a soul "Get On The Right Side". No fim deste post, você vê duas interpretações da música "Getaway", uma com Davenport e outra com Angela.


Formação atual: Andrew Levy (guitarra), Angela Ricci (voz) e Simon Bartholomew (baixo)

Outra novidade é ouvir o grupo com vozes masculinas no comando. Laville interpreta "Dontcha Wanna", com seu timbre idêntico a Sam Smith, e Jack Knight pega pesado na setentista "Little Dancer", com influência explícita de Chic, Tramps e, claro, o mestre Isaac Hayes. O disco ainda traz as vozes da experiente cantora norte-americana Angie Stone (Together) e da canadense Honey Larochelle (Heat).

O Brand New Heavies estreou no Brasil no extinto Free Jazz Festival, em 1995, e esteve por aqui pela última vez em 2013. Com o novo álbum, quem sabe eles não resolvem vir matar um pouco da saudade do público e, de quebra, ainda aproveitam o sol que brilha quase que o ano inteiro neste país tropical abaixo da linha do Equador. O convite está feito. Agora só precisamos de um ajudinha do Blue Note São Paulo. O que acham, rapazes?





terça-feira, 10 de setembro de 2019

New Orleans Jazz & Heritage Festival: 50 anos

Talvez não seja o melhor ou o maior, talvez não tenha as melhores atrações ou o público mais animado, mas ninguém coloca em dúvida que o festival New Orleans Jazz & Heritage, que acontece anualmente na cidade norte-americana de Nova Orleans, na Louisiana, é o festival mais eclético de todo planeta.

As más línguas vão dizer que a tal diversidade musical é apenas um chamariz para ganhar mais grana e desvirtuar a proposta de um festival genuíno de jazz.

Mas a verdade é que o festival, no decorrer dos anos, foi ficando cada vez maior e mais eclético e isso nunca foi um problema para os seus organizadores, que não titubearam em escalar nomes como Aerosmith, Pearl Jam, Bruce Springsteen, Aretha Franklin, Eric Clapton, Arcade Fire, Eagles, Robert Plant e Bob Dylan.

Em 2019, o festival completou 50 anos e sua principal atração forma os Rolling Stones, que acabaram adiando a apresentação por problemas de saúde do vocalista Mick Jagger. Mas a edição cinquentenária ainda tinha grandes nomes para oferecer, entre eles, Herbie Hancock, Buddy Guy, John Fogerty, Dianna Ross, Alanis Morissette, Santana, Al Green, Cécile McLorin Salvant, Tom Jones e Van Morrison.


Preservation Hall Jazz Band toca anualmente no festival

Ao mesmo tempo que recebe gigantes do pop, rock e r&b, o festival também mantém vivo sua principal espinha dorsal: a tradição da música de Nova Orleans. Conhecida como o berço do jazz, a cidade respira música 24h por dia, sete dias por semana. O festival é "apenas" o ápice deste caldeirão musical que tem o Mardi Grass como seu cartão-postal. Os desfiles que acontecem pelas ruas da cidade ao som de bandas tocando o jazz do início do século XX são acompanhados por milhares de pessoas.

Na última edição do festival, 12 palcos abrigaram centenas de atrações e a música tradicional da cidade, como sempre, teve seu espaço garantido nas vozes Trombone Shorty, Neville Brothers, Preservation Hall Jazz Band, The Dirty Dozen Brass Band, Keith Frank & the Soileau Zydeco Band e Sunpie & the Louisiana Sunspots.

Para festejar os 50 anos de festival, uma caixa com cinco CDs e 50 músicas gravadas ao vivo ao longo dos anos no festival foi lançada pela gravadora Smithsonian Folkways. Os registros históricos trazem nomes que se tornaram a alma e a personificação da música tocada no festival. Impossível não lembrar dos embaixadores do festival Allen Toussaint (1938-2015) e Dr. John (1941-2019), além de outras tradicionais atrações como Professor Longhair, The Neville Brothers, Preservation Hall Jazz Band e The Dirty Dozen Brass Band. Todos eles representados na caixa, que ainda inclui um livro com fotos e histórias sobre o festival. Você pode ouvir o disco na íntegra clicando aqui


Allen Toussaint, Cyril Neville e Dr. John: três dos mais icônicos músicos de Nova Orleans

Um dos momentos mais marcantes da seleção é o tema "Louisiana 1927”, interpretado pelo cantor John Boutte. A gravação foi feita em 2006, um ano após a devastação da cidade pelo furação Katrina, que deixou centenas de mortos e milhares de desabrigados, e o trompetista Terence Blanchard, nascido em Nova Orleans e um dos grandes incentivadores da cidade pelo mundo, com a música "A Streetcar Named Desire".

O mosaico musical do festival está representado com a rainha do soul Irma Thomas, nos temas "Old Rugged Cros" e "Ruler of My Heart", nas bandas cajun The Savoy Family Cajun Band, Bruce Daigrepont e BeauSoleil, nas vozes gospel de Zion Harmonizers e Johnson Extension, no zydeco de Boozoo Chavis e Buckwheat Zydecoe, e nos bluseiros Kenny Neal, Clarence Gatemouth Brown e Sonny Landreth.


Fairgrounds, o hipódromo local, abriga os diversos palcos do festival

Destaque também para os cantores Tommy Ridgley e Deacon John, um dos muitos interpretes que tiveram o privilégio de ser acompanhado pelo saudoso pianista Allen Toussaint. O disco fecha com um emocionante interpretação de "Amazing Grace/One Love", com o grupo The Neville Brothers.

As grandes ausências da caixa, que evidentemente priorizou músicos locais, são gravações com os membros do clã Marsalis, capitaneado pelo pai Ellis (piano), e os irmãos Wynton (trompete) e Branford (sax). Quem também faz falta são o pianista Harry Connick Jr., nascido em Nova Orleans, B.B. King, que tocou várias vezes no festival, além do lendário Fats Domino, que participou das primeiras edições do evento.

Para comemorar os 50 anos, a organização do festival criou um poster imitando a famosa capa do disco Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, que completou 50 anos de lançamento em 2017. Na versão New Orleans Jazz & Heritage, estão retratados músicos e pessoas que fizeram ou fazem a história do festival neste meio século de existência.

Entre os músicos retratados no ilustração estão Louis Armstrong, Allen Toussaint, Dr. John, Professor Longhair, Harry Connick Jr., além de duas estátuas representando dois dos mais importantes músicos da história de Nova Orleans: Jelly Roll Morton (1890-1941) e Buddy Bolden (1877-1931). Para saber os nomes de todos os músicos, clique aqui.


Ilustração traz figuras icônicas da história do festival de Nova Orleans


















segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Manu Katché - Neighbourhood

Por 14 anos o Guia de Jazz esteve no ar com a missão de aproximar os internautas ao jazz. Um dos tópicos mais visitados era o de dicas de CDs, no qual dezenas de discos eram indicados e resenhados por mim. Infelizmente, com o fim do site em setembro de 2015, todo esse acervo foi "perdido".

Mas não totalmente perdido. Além do livro Jazz ao Seu Alcance - que traz todo o conteúdo do guia (dicas de CDs, DVDs, livros, entrevistas e muito mais) - você encontrará quinzenalmente neste blog algumas dicas de CDs publicadas anteriormente no site Guia de Jazz.

Sempre que possível, ao final de cada resenha você encontrará vídeos do Youtube com algumas faixas do disco indicado para escutar. Boa leitura e audição. Veja outras dicas de CDs aqui


Manu Katché - Neighbourhood (2005)


O baterista Manu Katché não é exatamente um músico de jazz, mas isto não deve ser encarado como um problema, já que este francês de origem africana participou de dois importantes discos do mundo pop na década de 80, Nothing Like the Sun, do cantor Sting, e So, do ex-Genesis Peter Gabriel. Paralelamente ao seu emprego oficial, Katché também flerta com o fusion e o jazz experimental, como é o caso de Neighbourhood, segundo disco solo do baterista lançado em outubro de 2006 na Europa e que foi editado pela ECM nos Estados Unidos quatro meses depois.

Para acompanhá-lo, o baterista escalou um quarteto de responsabilidade. Na linha de frente estão o experiente saxofonista norueguês Jan Garbarek, com quem o baterista já gravou algumas vezes, e o aclamado trompetista polonês Tomasz Stanko. Completam o time os também poloneses Slawomir Kurkiewicz (baixo) e Marcin Wasilewski (piano). Katché acerta em cheio ao escalar o trio polonês liderado por Stanko. Seus trabalhos lançados pela ECM são de grande beleza e aqui não poderia ser diferente. Outro atrativo é poder ouvir Garbarek tocando “sax de verdade”. Nos últimos anos, ele tem investido em discos experimentais e seu sax acaba sendo ofuscado por sons minimalistas.


Baterista tocou com gigantes da música como Sting e Peter Gabriel

O CD começa tranquilo ao som de “November 99”, com o piano de Wasilewski dando boas-vindas ao ouvinte. Logo depois é a vez do sax de Garbarek aparecer em “Number One” e na funkeada “Lovely Walk”. O fusion também é a raiz das ótimas “No Rush”, com destaque para o trompete de Stanko, e “Take Off and Land”, na qual a parceria Garbarek e Wasilewski está em seu ponto máximo.

É claro que um momento mais introspectivo não poderia faltar em um disco que traz Jan Garbarek e Tomasz Stanko. O trompete brilha nas singelas “Lullaby” e “February Sun” e o sax tenor arrasa em “Good Influence” e “Rose”. Para fechar, “Miles Away”, uma homenagem a Miles Davis com uma interpretação irrepreensível de Katché e o trio polonês. Para quem não conhecia o baterista só resta uma coisa a dizer: “Muito prazer, monsieur Katché”.

MÚSICAS:

November 99
Number One
Lullaby
Good Influence
February Sun
No Rush
Lovely Walk
Take Off And Land
Miles Away
Rose

Ouça abaixo "Number One" e "Miles Away":