sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Sara Gazarek volta ousada e madura

Mais de uma década se passou desde o o lançamento do primeiro disco da cantora norte-americana Sara Gazarek.

De lá para cá, apesar de ser respeitada pela crítica especializada, Sara continua no segundo escalação, atrás de cantoras mais contemporâneas como Cécile McLorin Salvant, Esperanza Spalding, Lizz Wright, Cyrille Aimée e Gretchen Parlato.

É claro que o sucesso pode não ser o principal objetivo de um artista, mas não adianta você ter um trabalho de qualidade e não ser reconhecido por isso.

Não é uma questão de ego, mas sim uma recompensa mais do que merecida para um artista que doa boa parte de sua vida pelo desejo de expressar sua arte, com dedicação, formação e, principalmente, paixão pelo que faz.

Agora, Sara Gazarek parece ter se encontrado definitivamente. Com o lançamento do disco Thirsty Ghost, o sexto da carreira, a cantora deixou de lado canções "mais tolas" e mergulhou em um caldeirão sonoro que inclui Nick Drake, Sam Smith, Dolly Parton e Stevie Wonder. O resultado é um disco atrevido e pulsante.

Em entrevistas recentes, ela falou da importância do cantor Kurt Elling nesta mudança. "Após uma apresentação, Kurt conversou comigo e disse que eu tinha potencial para crescer artisticamente e que ficar limitada a ser uma cantora de standard não era o suficiente".


Sara Gazarek lança novo álbum, o primeiro produzido inteiramente pela cantora

A chacoalhada do veterano cantor foi crucial para a mudança de rumo e atitude de Sarah. Isso fica claro logo na primeira canção, "Never Will I Marry", com destaque para o teclado de Stu Mindeman e a bateria de Christian Euman. O tema mostra uma cantora consciente de sua capacidade e altiva para alçar voos mais perigosos. Na sequência, uma versão deliciosa de "I'm Not the Only One", sucesso mundial na voz do cantor Sam Smith.

Outras versões também mostram a procura de Sara por d istintos gêneros e épocas, com “River Man”, de Nick Drake (1969), “I Believe (When I Fall In Love It Will Be Forever)”, de Stevie Wonder, “Jolene”, de Dolly Parton e “Cocoon”, de Björk. Ainda no território de composições alheias, Sara oferece ao ouvinte uma bela versão cantada de uma composição do pianista Brad Mehldau, que aqui ganhou o nome de "Distant Storm", com a participação especial de Kurt Elling.

Quem também dá tempero ao disco é o pianista Larry Goldings, que toca em duas composições escritas em parceria com Sarah: “Easy Love” e “Gaslight District”. Para fechar, a cantora deixou o mais jazzístico tema do álbum: "Spinning Round", com direito da scat, solo de piano e um andamento rítmico alternando o tempo inteiro.

O que acontecerá com Sara Gazarek depois de Thirsty Ghost só o tempo dirá. Independentemente do resultado, para os mais atentos, ficará a certeza de que a cantora não é popular por falta de ousadia ou talento, mas, talvez, porque nem todos nesta vida foram forjados para alcançar a notoriedade ou mudar paradigmas. Quem sabe, não é mesmo?



















segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Blue World traz mais inéditas de Coltrane

Mais de meio século se passou desde a morte de John Coltrane até que uma nova descoberta chegasse ao público.

A novidade responde pelo nome de Blue World e inclui essencialmente versões alternativas de músicas já gravadas anteriormente pelo músico, entre elas, "Naima", "Village Blues", "Traneing In" e "Like Sonny".

O disco será lançado em 27 de setembro, pela gravadora Impulse!, quatro dias após o nascimento do saxofonista, que nasceu há 93 anos, em Hamlet, na Carolina do Norte (EUA). Coltrane morreu em 17 de julho de 1967, aos 40 anos de idade, vítima de câncer no fígado.


A compilação, cuja existência se desconhecia, foi gravada em junho de 1964 pelo quarteto clássico de John Coltrane - com McCoy Tyner no piano, Elvin Jones na bateria e Jimmy Garrison no baixo -, entre as gravações dos álbuns Crescent e A Love Supreme, no estúdio de Rudy Van Gelder, em Nova Jersey.


Elvin Jones, McCoy Tyner, John Coltrane e Jimmy Garrison

Os temas de Blue World, que faziam parte de uma sessão de gravações com 37 minutos, foram gravados pelo saxofonista para a trilha sonora do filme canadense Le Chat dans le Sac, a convite do diretor Gilles Groulx. Porém, segundo a National Public Radio, apenas dez minutos de gravações foram aproveitadas no filme.

“Blue World revela o progresso pessoal de Coltrane, bem como a consistência interativa e os detalhes sonoros que o quarteto clássico estabeleceu firmemente como a sua assinatura coletiva em 1964. Essa assinatura era tão segura e dramática, tão vigorosa e diferente do som que Coltrane tinha criado antes.



"É significativo que esta sessão de gravações - qualquer que tenha sido a principal força motriz - tenha acontecido entre [a criação de] dois dos álbuns mais expansivos e espiritualmente transcendentes de Coltrane, que iriam definir o tom do resto da sua carreira musical”, destacou a Impulse! em comunicado divulgado para a imprensa.

O primeiro single de Blue World é uma segunda versão alternativa do tema "Out of This World" (originalmente composta por Harold Arlen e Johnny Mercer). Uma outra versão de "Out of This World" foi incluída no álbum Coltrane (1962).

No ano passado, a Impulse! lançou um outro álbum perdido de John Coltrane, Both Directions At Once, que trouxe uma sessão de gravação em 1963 durante a qual Coltrane capitaneou o seu quarteto clássico.

Fonte: publicado originalmente no site do jornal Público, de Portugal.

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Chrissie Hynde mergulha nos standards

Sempre que um artista pop resolve entrar no jazz fica a impressão de que alguma coisa está fora da ordem. Para os mais eloquentes, a migração de gênero é coisa de oportunista e não deve ser levada a sério. Apesar da gritaria, isso tem acontecido desde sempre, mas o caso mais gritante foi a série de quatro disco The Great American Songbook, do cantor Rod Stewart, no início dos anos 2000.

O veterano roqueiro pegou os grandes standards da música norte-americana compostos por Cole Porter, George Gershwin, Rodgers & Hart, Harold Arlen e Irvin Berlin, acompanhado por uma orquestra, e soltou sua voz rouca. O resultado foi um sucesso estrondonso, apesar de toda a reclamação.

Ele não foi o primeiro a fazer isso, uma década antes, Robert Palmer e Diana Ross também gravaram belos discos com orquestra. A mesma fórmula também foi usada por Bryan Ferry, Michael Bubble, Michael Bolton e, mais recentemente, pela cantora Annie Lennox, que lançou o disco Nostalgia pela prestigiada gravadora de jazz Blue Note.

Toda essa introdução nos remete a mais um disco com a mesma pegada. Desta vez, a "usurpadora" é uma senhora de 67 anos que responde pelo nome de Chrissie Hynde, também conhecida como a voz do grupo The Pretenders, que fez muito sucesso na década de 1980. O disco Valve Bone Woe traz canções compostas por Brian Wilson (the Beach Boys), Hoagy Carmichael, John Coltrane, Nick Drake, Ray Davies, Rodgers & Hammerstein e Tom Jobim, tudo acompanhado pelo the Valve Bone Woe Ensemble.

Antes que comecem a apedrejar Chrissie, que há muito tempo não lança nada relevante, é importante salientar que sua voz caiu muito bem em canções imortalizados por Nina Simone, Billy Holiday e Nancy Wilson. O cartão de vista é "How Glad I Am", uma bela balada que fez grande sucesso com Nancy Wilson, mas aqui tem como destaques naipes de metais e uma guitarra muito bem postada.


Aos 67 anos, Chrissie Hynde lança seu segundo disco solo longe do The Pretenders


E o que dizer do clássico "Caroline, No", do disco Pet Sounds, dos Beach Boys? Mais uma vez, a voz de Chrissie mostra-se acertada e o arranjo oferece pitadas de dub que deixam a melodia ainda mais bela. Em "You Don't Know What Love Is", a melancolia toma conta de Chrissie e do ouvinte.

Com "Wild Is The Wind" e "Absent Minded Me", gravadas respectivamente por Nina Simone e Barbra Streisand, Chrissie deixa claro que o repertório priorizou temas mais femininos. Mas isso não a impediu de incluir "Once I Loved", de Tom Jobim, "I Get Along Without You Very Well", famosa na voz de Chet Baker, "River Man", de Nick Drake, e "No Return", dos The Kinks. O jazz aparece "de verdade" em "Naina", de John Coltrane, e a instrumental "Meditation on a Pair of Wire Cutters, de Charles Mingus.

No último dia 6 de julho, no mitológico The Hollywood Bowl, em Los Angeles, California (EUA), Chrissie apresentou ao vivo o repertório de seu novo disco, acompanhada por uma grande orquestra. O resultado pode não ter sido brilhante, pois o local se mostrou inadequado para esse tipo de canção, mas ficou evidente que a cantora colherá bons frutos desta sua introdução ao jazz. Mas fica aqui um conselho de amigo, assim como fez neste show, inclua sempre alguns clássicos do Pretenders no repertório. É bom não cutucar a onça com vara curta.











terça-feira, 13 de agosto de 2019

Pat Metheny - Secret Story

Por 14 anos o Guia de Jazz esteve no ar com a missão de aproximar os internautas ao jazz. Um dos tópicos mais visitados era o de dicas de CDs, no qual dezenas de discos eram indicados e resenhados por mim.

Infelizmente, com o fim do site em setembro de 2015, todo esse acervo foi "perdido". Mas não totalmente perdido.

Além do livro Jazz ao Seu Alcance, que traz todo o conteúdo do guia, com dicas de CDs, DVDs, livros, entrevistas e muito mais, você encontrará quinzenalmente neste blog algumas dicas de CDs publicadas anteriormente no site Guia de Jazz.

Sempre que possível, ao final de cada resenha você encontrará vídeos do Youtube com algumas faixas do disco indicado para escutar. Boa leitura e audição. Veja outras dicas de CDs aqui

Pat Metheny - Secret Story (1992)

A trajetória do guitarrista Pat Metheny começou há quase meio século, na distante década de 1970, quando chamou a atenção do vibrafonista Gary Burton, que o escalou para ser seu pupilo. Desde então, Metheny se transformou em um dos mais inventivos e festejados músicos do jazz. Seu toque pessoal e sua inquietação musical o levaram a distintos caminhos musicais e fizeram do músico um verdadeiro alquimista sonoro.

Solo, elétrico, acústico, em trio, em quarteto, com orquestra, não importa, a genialidade do guitarrista pode ser provada em todos os formatos e sem qualquer contraindicação. Desde sua estreia na gravadora ECM, em 1976, Metheny tocou com dezenas de músicos e imortalizou sua guitarra sintetizada dentro do jazz fusion.

Com os discos Offramp (1982),The Falcon And The Snowman (1985), Still Life Talking (1987), Zero Tolerance for Silence (1994), Orchestrion (2010) ou ao lado de Charlie Haden, John Scofield, Ornette Coleman, Brad Mehldau e Chris Potter, Metheny não poupou esforços para traduzir em música tudo aquilo que tinha em mente.

Entre os discos mais interessantes está Secret Story (1992), que poderia muito bem ter sido a trilha sonora de um filme. Ao todo, são mais de 80 músicos, incluindo a Orquestra de Londres, conduzida por Jeremy Lubbock, os percussionistas brasileiros Armando Marçal e Naná Vasconcelos, o veterano gaitista Toots Thielemans, além dos velhos camaradas da Pat Metheny Band, Paul Wertico (bateria), Steve Rodhy (baixo) e Lyle Mays (piano). Em 2017, uma versão estendida foi lançada. A novidade são cinco faixas gravadas na mesma época, mas que acabaram ficando fora do disco original.

A sonoridade criada aqui é intensa e envolvente. Logo de saída aparece "Above The Treetops", com Metheny solando no violão entre o coral de voz Cambodian Royal Palace. O som nos leva diretamente às trilhas do grego Vangelis. O chamado "som de Pat Metheny" aparece por inteiro em "Facing West", uma das poucas faixas com a participação de Mays no piano. O clima de trilha sonora volta com tudo na singela "Cathedrak In a Suitcase".

Em "Fiding and Believing", com 10 minutos de duração, o vocal de Mark Ledford dá o tom de um tema cheio de nuances e surpresas. Durante a turnê deste disco, um jogo de luzes muito bem sacado é usado neste música. Confira no vídeo abaixo a apresentação completa do show deste álbum gravado em New Brunswick, em Nova Jersey (EUA).

Os dois temas mais "simples" são "Sunlight", uma balada pop, e a delicada "Always and Forever", com participação de Toots Thielemans. Em "See the World", o velho Metheny está por completo. Suas frases rápidas e precisas, estão em perfeita sintonia com a bateria sempre imprescindível de Wertico.


Contra-capa do disco lançado pela gravadora Geffen

Outro momento singular acontece na singela "Antonia", com Metheny tocando guitarra e acordeon sintetizados. O mesmo acontece com "Tell Her You Saw Me", que traz um dueto de guitarra e harpa, tudo com a Orquestra de Londres fazendo o pano de fundo, e "River Rain", com sete minutos de duração e a perfeita fusão entre a guitarra de Metheny e a percussão de Marçal.

Diante de um álbum tão forte e delicado ao mesmo tempo, não poderia faltar um tema épico. E é assim mesmo que deve ser rotulado "The Truth Will Always Be", com nove minutos de duração. Mais uma vez, a bateria de Wertico faz toda a diferença dentro de um tema que vai criando vida a cada minuto. O arranjo envolve o ouvinte de uma maneira única.

Quando você percebe, já está completamente entorpecido e hipnotizado pelo tema. No meio da canção, quase como um grito de socorro, a guitarra sintetizada de Metheny corta o silêncio com um solo arrebatador. A catarse é inevitável e a expectativa é completamente superada.

Com Secret Story, Pat Metheny provou mais uma vez que não há limite para sua guitarra e sua mente musical. Hoje, aos 65 anos de idade, o velho guitarrista oferece aos seus fãs, a cada disco, um novo desafio e a garantia de que até o fim de seus dias, ele terá sua guitarra em punho para provocar as mais distintas sensações em seu público.













sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Ressuscitando Miles

Passa ano e entra ano, e a figura onipresente de Miles Davis está sempre "assombrando" o mundo do jazz. É claro que isso não é uma crítica, pelo contrário, Miles fez por merecer essa devoção.

Mas é fato que muitos ainda faturam com o músico de jazz mais importante da história ao lado de Duke Ellington, Charlie Parker, Louis Armstrong e John Coltrane. Neste ano, três lançamentos voltam a "ressuscitar" o trompetista norte-americano que morreu em 1991, aos 65 anos.

O primeiro é o lançamento do vinil duplo do disco Complete Birth Of The Cool, de 1957. As gravações foram feitas entre 1949-1950, com a participação de Gerry Mulligan, Lee Konitz, Max Roach, John Lewis e os arranjos de Gil Evans.

A versão estendida conta com uma apresentação ao vivo gravada no The Royal Roost, nos dias 4 e 18 de setembro de 1948.

Outro lançamento é o disco inédito Rubberband (foto abaixo), gravado originalmente em 1985, o que seria a estreia do trompetista na gravadora Warner. Mas o disco acabou engavetado e "substituído" pelo álbum Tutu. A nova versão de Rubberband traz a participação das cantoras Lalah Hathaway, Ledisi e Medina Johnson. Originalmente, o disco teria a participação de Chaka Khan e Al Jarreau. Mas isso acabou não acontecendo.

A última preciosidade de Miles para 2019 é o documentário Miles Davis: Birth of the Cool, do aclamado documentarista Stanley Nelson. A estreia aconteceu no festival Sundance, em janeiro, e foi muito elogiado pela crítica.

Segundo o diretor, além de fotos inéditas e gravações nunca antes ouvidas, o documentário entrevista a viúva de Miles, Frances Davis, além de vários músicos, entre eles, Herbie Hancock, Santana e Ron Carter.

Além disso, o ator Carl Lumbly narra, como se fosse o próprio Miles, trechos da autobiografia do músico, deixando o documentário ainda mais atraente e pessoal.

Vale lembrar que este ano comemora-se os 60 anos do lançamento do disco Kind of Blue, no dia 17 de agosto de 1959. Considerado um divisor de água dentro do jazz, o disco traz o trompetista ao lado de John Coltrane (sax), Julian Cannonball Adderley (sax), Paul Chambers (baixo), Bill Evans (piano) e Wynton Kelly (piano), Jimmy Cobb (bateria) .

Oficialmente, não há nada programado para marcar essa importante data no calendário do jazz. Para quem quer saber mais sobre o cultuado disco, procure os livros Kind of Blue, de Richard Williams, da editora Casa da Palavra, e Kind of Blue: a história da obra prima de Miles Davis, de Ashley Kahn, da editora Barracuda. Como foram lançados faz um bom tempo, não será difícil encontrar em um sebo perto de você. Vale a pena a leitura.

O trompetista também virou filme em 2016, com o ator Don Cheadle fazendo o papel do músico, além de estrear na direção.  Miles Ahead não conta a história cronológica de Davis. O diretor preferiu pinçar alguns pontos de sua trajetória e enfatizar como a genialidade do músico trazia dificuldade para sua vida ao mesmo tempo que o tornou um dos músicos mais influentes do século XX.

LP duplo do disco Complete Birth Of The Cool, originalmente lançado em 1957